Os trabalhadores esquecidos das Olimpíadas de Tóquio de 2020: A condição difícil dos estagiários técnicos estrangeiros no Japão durante a pandemia de COVID-19
KAZUE TAKAMURA | 20 DE JUNHO 2020 | EDIÇÃO 10 | TRADUZIDO DO INGLÊS
Em 12 de março de 2020, o chefe da Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou oficialmente o surto de COVID-19 uma pandemia global. Dez dias depois, o Comitê Olímpico Internacional (COI) anunciou o cancelamento das Olimpíadas de Tóquio, originalmente programadas entre julho e agosto de 2020. Devido a pandemia, o cancelamento das Olimpíadas de Tóquio provocou um debate sobre as enormes perdas econômicas sem precedentes na mídia internacional e nacional. No entanto, pouca atenção foi dada à situação de centenas de milhares de trabalhadores migrantes que iriam servir o sonho japonês de sediar as Olimpíadas. Este artigo procura documentar a situação dos trabalhadores migrantes não qualificados no Japão, ou "trabalhadores esquecidos" das Olimpíadas, que foram severamente afetados pelos inúmeros danos causados pela pandemia de COVID-19.
O aumento da dependência do Japão nos trabalhadores estrangeiros é evidente no número recorde de trabalhadores não-cidadãos (1,66 milhões) em outubro de 2019. Os estagiários técnicos estrangeiros (Ginou Jishusei) têm servido como um exército de facto de trabalhadores migrantes não qualificados nas últimas três décadas. O número de estagiários técnicos estrangeiros aumentou de 150.000 em 2010 para 410.000 em 2020. Esses trabalhadores foram recrutados nos países asiáticos vizinhos, principalmente na China, Vietnã, Filipinas e Indonésia. A grande expansão dos estagiários estrangeiros na última década foi causada pela necessidade urgente do Japão de organizar os Jogos Olímpicos de Tóquio de 2020. Esses migrantes foram trazidos para apoiar os projetos de infraestrutura de grande escala relacionados aos os Jogos Olímpicos, indústrias manufatureiras e vários setores de serviços.
O que distingue o programa de estagiários técnicos do Japão é sua profunda contradição entre a premissa - em teoria - paternalista de transferir "habilidades e conhecimentos técnicos" para países de baixa renda e a - na prática - ampliação dos notórios abusos trabalhistas e discriminação. De acordo com a legislação trabalhista nacional, os direitos trabalhistas dos estagiários técnicos estrangeiros são protegidos. Entretanto, na realidade, os estagiários estrangeiros, muitas vezes sofrem grandes abusos trabalhistas por parte dos seus empregadores. Essas violações de direitos incluem horas extras excessivas de trabalho, salários não pagos ou mal pagos, retenção coercitiva de salário sob o nome de "poupança obrigatória", confisco de passaporte e formas habituais de violência verbal e física por parte dos seus empregadores. Esses estagiários estrangeiros enfrentam a dor indescritível da servidão laboral por causa de suas dívidas acumuladas devido as taxas pré-partida cobradas em excesso, o medo de multas impostas por intermediários se não cumprirem o contrato de trabalho, bem como a responsabilidade financeira dos migrantes por seus familiares deixados para trás. Considerando a presença de barreiras e abusos discriminatórios, não é surpreendente o crescimento do número de estagiários técnicos estrangeiros fugitivos e a alta prevalência de mortes de estagiários técnicos na última década. Em suma, o sistema de estagiários estrangeiros do Japão produz a própria estrutura de vulnerabilidade e falta de direitos dos migrantes, ao privar a capacidade dos mesmos de reivindicar seus direitos.
A pandemia de COVID-19 aprofundou ainda mais a existente imobilidade estruturada dos estagiários técnicos estrangeiros. Aqueles que estão empregados principalmente nos setores de manufatura, restaurantes e turismo estão mais em risco de serem demitidos por causa da recessão econômica causada pela pandemia. Devido à diminuição de suas oportunidades de renda, estagiários estrangeiros desempregados e ex-estagiários que fugiram de seus empregadores ficaram sem acesso a abrigo, alimentação e apoio social a preços acessíveis. Grupos de defesa dos migrantes e profissionais de saúde expressaram preocupação com os riscos à saúde de ex-estagiários fugitivos que não têm qualquer acesso à serviços de saúde. Ex-estagiários indocumentados estão mais vulneráveis a não buscar serviços de saúde por medo de deportação. Além disso, os trabalhadores migrantes não podem voltar para casa por causa das proibições de viagem impostas por seus países de origem devido a pandemia. A situação precária dos estagiários estrangeiros e dos ex-estagiários fugitivos é ampliada devido à sua situação de endividamento e a pressão coerciva para pagar as dívidas acumuladas que devem às agências de migração em seus países de origem.
Em resposta à preocupação crescente com os estagiários estrangeiros desempregados, desde abril de 2020, o governo japonês tem implementado uma série de políticas de emergência para tornar o sistema atual de estagiários estrangeiros mais flexível. Essas políticas trabalhistas relacionadas à pandemia focam na flexibilidade do setor trabalhista e no apoio à renda. Primeiro, os estagiários estrangeiros desempregados são autorizados a buscar oportunidades de emprego em um setor além de suas restrições de emprego originais. Esses estagiários transferidos são autorizados a permanecer no país por até um ano. Essa política de transferência intersetorial de mão-de-obra é vista como uma solução vantajosa para os setores que enfrentam escassez grave de mão-de-obra e para os trabalhadores migrantes desempregados.
Estes setores, especialmente os de agrícola e de prestação de cuidados a idosos, foram muito afetados pela proibição de viagens devido à pandemia que proibiu a entrada de trabalhadores no Japão desde março de 2020. Por exemplo, os produtores de couve na Província de Gunma, ao norte de Tóquio, contrataram 300 estagiários estrangeiros que originalmente trabalhavam na indústria do turismo. De acordo com o Ministério da Agricultura, em abril, 2.400 trabalhadores agrícolas estrangeiros, incluindo estagiários técnicos, foram proibidos de entrar no Japão devido à proibição de viagem.
Em segundo lugar, aqueles que completaram seu contrato de trabalho e não podem voltar para casa devido a restrições de viagem implementadas por seus países de origem são autorizados a permanecer no Japão para trabalhar com o mesmo empregador ou com um empregador diferente por até 6 meses. Em terceiro lugar, o governo japonês anunciou que os estagiários técnicos estrangeiros estão incluídos na distribuição da ajuda emergencial de COVID-19, no valor de 100.000 JPY (cerca de 910 USD) por pessoa. Esses pacotes de emergência proporcionaram um certo grau de alívio aos trabalhadores migrantes mais precários.
No entanto, é preciso reconhecer que essas respostas de emergência não foram implementadas devido à preocupação do governo japonês com a proteção dos direitos dos trabalhadores estrangeiros. Essas políticas são, de fato, constitutivas das prioridades econômicas nacionais, minimizando os choques econômicos adversos causados pela crise tripla, ou seja, a pandemia de COVID-19, o cancelamento das Olimpíadas de Tóquio, e o envelhecimento exponencial da população. Os estagiários técnicos estrangeiros, que estão situados na base da hierarquia trabalhista, são considerados como trabalhadores descartáveis de baixa remuneração que podem ser úteis em auxiliar o Japão administrar esses desafios. Assim, espera-se que os trabalhadores migrantes carreguem o fardo da pandemia não apenas por serem demitidos repentinamente sem qualquer proteção trabalhista, mas também por serem convenientemente transferidos para outros empregos de baixos salários sem qualquer garantia de emprego ao longo prazo. Por fim, os trabalhadores esquecidos dos Jogos Olímpicos de Tóquio permanecem profundamente vulneráveis porque, como estagiários técnicos estrangeiros, sua própria essência é a disponibilidade de mão-de-obra e a vulnerabilidade à exploração.
Kazue Takamura
Kazue Takamura é professora no Instituto de Estudos de Desenvolvimento Internacional, McGill University. A pesquisa de Takamura se concentra nos regimes emergentes de vigilância migratória da Ásia, principalmente na intersecção negligenciada entre os mercados de trabalho neoliberais e a punição de migrantes iliberais, incluindo a detenção imigratória. Seus trabalhos também focam nos padrões de mobilidade e imobilidade de mão-de-obra de gênero que são produzidos pelos regimes de vigilância de migrantes neoliberais.